10/09/2010

Cheiros

Os cheiros são registos que me têm acompanhado durante toda a minha vida. A minha memória olfactiva tem-me conduzido através dos tempos aos mais diversos
sítios onde passei a minha infância. Sei exactamente o que cheirava a quê e onde.
O que é engraçado e provavelmente natural, é que dou comigo a recordar e a sentir os cheiros que me marcaram há tantos anos, com a mesma intensidade de então.
Pode parecer saudosismo, ficar para trás, mas não é. É apenas sentir o ontem que todos devíamos ter. E eu tive, com todo o afecto do mundo.
Então vamos aos cheiros.

Quando entrava em casa da minha avó materna, lembro-me de que ali pairava um cheiro quente a vacas, bosta e palha, que vinha da palheira por baixo da casa. Era um cheiro forte, marcante, que não era de todo desagradável, fazia parte da envolvência, do cheiro característico da casa, que nem por isso deixava de ser uma casa asseada. Posso dizer até que não seria a mesma se não cheirasse assim: a lavoura obrigava.
Lembro-me também de que, quando dormia lá e me deitava nos lençóis de linho fiado pela minha avó à noite à lareira à luz da candeia – lavados e passados com o ferro de brasas –, a sensação era tão boa, o cheiro era tão inebriante que é impossível descrevê-lo. E aquele cheiro da «abobrais» (penso que deve ser algo parecido com «aboboragem», das abóboras que também entravam na primeira refeição das vacas, às 7 da manhã, num caldeiro enorme) a ferver ao lume onde a lenha crepitava, estalava, e as faúlhas subiam e saltavam à volta? A casa era invadida pelo odor saudável a hortaliças cozidas à mistura com farelo que quase apetecia comer!
Na parte de baixo da casa havia uma loja onde se guardavam os produtos que a terra dava. Também aí me deliciava com o cheiro que vinha da «tulha», que era o sítio onde se guardava o pão em grão. Era um cheiro doce e ao mesmo tempo forte que me fazia ficar sempre durante alguns momentos a desfrutar de algo que hoje considero único.
Há outro cheiro que guardo: era o do soalho das casas depois de esfregado com sabão azul e branco. Aquela mistura de água, sabão e madeira molhada era uma festa de cheiros, qualquer coisa que ficava a anos-luz de todos os produto sintéticos de agora, por muito desinfectantes que sejam. É de notar que esta tarefa era feita pelas mulheres, e era uma tarefa árdua, porque tinham que andar de joelhos de escova na mão e a puxar pela força, o que as deixava exaustas. Exaustas mas satisfeitas, por poderem usufruir daquele odor e limpeza únicos.
Isto, sem esquecer o cheiro especial da chouriça assada na brasa logo ao pequeno-almoço acompanhada de café de cevada…

No que toca a cheiros, a nossa aldeia desse tempo deixou-me muitas e intensas recordações.
Ainda hoje, tantos anos depois, o meu olfacto desfruta delas.

E há mais disto no meu «arquivo».







Texto de autoria de Maria Dulce Martins

1 comentário :

  1. Leio sempre com muita atenção os seus belos textos...quem é da minha idade sabe muito bem daquilo que fala e fá-lo com muita sabedoria...outros tempos que já vão distantes mas que ainda permanecem na nossa memória e que concerteza irão permanecer enquanto a tivermos... Sabemos muito bem que a geração que nos antecedeu tive essas vivências e muita foram vividas com muita dificuldades e incertezas quanto ao futuro...mas uma coisa temos a certeza, existiam outras relações, outras felicidades, outras alegrias, outros barulhos e muitas crianças nas nossas aldeias...HOJE NÃO... Continue a escrever estas coisas que lemos sempre com muita atenção e gosto. AG (C. Branco)

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